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ENTREVISTA: NECESSIDADE DE UM NOVO PARADIGMA PARA MANUTENÇÃO DE RODOVIAS PAVIMENTADAS

 

Alertar os colegas da necessidade de se investir um pouco mais de tempo de auditoria na análise do processo de concepção, planejamento, programação e estruturação dos programas de manutenção de rodovias pavimentadas e menos na auditoria das obras executadas. esse foi um dos motivos que levaram os auditores de controle externo do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul (TCE-RS), os engenheiros Paulo Ricardo Rodrigues Pinto e Rafael Minuscoli Stolf, a escrever o artigo “Necessidade de um Novo Paradigma para Manutenção de Rodovias Pavimentadas”.

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O trabalho foi apresentado no XV Simpósio Nacional de Auditoria de Obras Públicas (Sinaop), realizado em Vitória (ES) no ano de 2013. Em comemoração aos seus 20 anos de fundação, o Ibraop entrevistou os autores para que eles e nós possamos reviver essa experiência. Confira:

 

IBRAOP – Relate como se deu a seleção do tema deste artigo.

 

PAULO E RAFAEL – A ideia de escrevermos o artigo teve basicamente três motivações.

 

A primeira delas foi a onda de contratações de obras de reabilitação da condição funcional dos pavimentos rodoviários. Não apenas no Rio Grande do Sul mas também pelo Brasil. Como se a “conservação” rodoviária, fosse menos importante ou desconectada da “revitalização”, “recuperação” e “restauração” da condição funcional, menos importante ou desconectadas da “reabilitação” dos pavimentos (restauração estrutural e reconstrução parcial e total). A ideia era chamar a alertar para essa tendência.

 

A segunda das motivações, abordada na resposta à pergunta 4, refere-se aos principais paradigmas que norteiam a contratação de programas de preservação rodoviária. Preservação de rodovias, no caso, envolve a manutenção ( “conservação”, “revitalização”, “recuperação” e “restauração” da condição funcional) e a reabilitação (restauração, reconstrução parcial e total das condições estruturais). Com base nas auditorias de contratos de preservação de pavimentos, constatamos que a maior parte dos paradigmas aplicados ou estavam equivocados ou estavam superados, apesar dos resultados indesejáveis. Sabe aquela frase atribuída ao Einstein (“Tolice é fazer as coisas sempre do mesmo jeito e esperar resultados diferentes”), pois, então, os programas rodoviários continuam acumulando insucessos, mas ninguém pensam em mudar os paradigmas.

 

Apenas para citar alguns paradigmas equivocados. Tem-se a opção da empreitada por preço global para contratos de manutenção – já consolidado o entendimento de que se trata de equívoco, que a opção preferencial dos contratos de manutenção e reabilitação, pela variabilidade dos segmentos e imprecisão dos projetos, deve recair sobre as empreitadas por preço unitário. Tem-se a questão do curto “período de análise” (5 a 8 anos) quando as análise deveria abranger períodos mais longos (20 a 30 anos) para incorporar as nuances dos vários tipos de intervenção. Tem-se a “duração dos contratos” (limitada a 5 anos), quando estudos já evidenciam que contratos entre 8 e 12 anos permitem diluir melhor os riscos da execução, das intervenções e alcançar maior comprometimento dos contratados. Tem-se contratação individualizada de segmentos rodoviários em lugar de a manutenção abranger a totalidade da malha rodoviária. E tem-se os equívocos das abordagens de manutenção (“Reativa” vs “Proativa” e “Worst-First Approach” vs “Best-First Approach”), que serão detalhados mais adiante.

 

A terceira motivação, foi alertar os colegas da necessidade de investir um pouco mais de tempo de auditoria na análise do processo de concepção, planejamento, programação e estruturação dos “programas” de manutenção (fase onde se consegue gerar maiores benefícios) e menos na auditoria das obras executadas (quando as consequências já estão consolidadas). A gente tem conhecimento de que esse não é um processo que depende exclusivamente dos auditores. Tem a ver com a orientação geral dos planos de auditoria, disponibilidade de tempo para auditoria, base de conhecimento do auditor, acesso À ferramentas técnicas e tecnológicas, demandas para auditar outros assuntos, pressão dos prazos, etc.

 

IBRAOP – Quais foram as principais dificuldades no desenvolvimento desse estudo?

 

PAULO E RAFAEL – Tanto eu quanto o Rafael, à época, nos ressentimos muito da indisponibilidade de sistemas computacionais para confrontar uma e outra alternativa (de um lado “Reativa” vs “Proativa” e, de outro, “Worst-First Approach” vs “Best-First Approach”). Nós chegamos a pensar em criar um modelo computacional, mas não conseguimos mobilizar tempo para isso. Acabamos nos valendo da experiência acadêmica publicada, que endossava nosso raciocínio. Conseguimos comprovar nosso ponto de vista com modelos desenvolvidos em planilhas eletrônicas, mas não era a mesma coisa. Nossa intenção era trabalhar com modelos reais, rede de rodovias reais. Quem sabe, um dia a gente não consegue encaminhar essa análise e comprovação.

 

IBRAOP – Qual resultado prático surgiu da apresentação desse trabalho?

 

PAULO E RAFAEL – Lamentavelmente, e como ocorre com a maior parte da produção científica nacional, pouca atenção foi dada. Pode-se perceber que a forma de contratação não foi modificada e os equívocos continuam se repetindo. Paciência. Há trabalhos acadêmicos fantásticos direcionados a reduzir o Custo Brasil, mexer na qualidade das obras, capazes de afetar significativamente o orçamento das obras, que também recebem pouca ou quase nenhuma atenção. E também não estamos sozinhos nessa. Temos a companhia dos Tribunais de Contas, por exemplo, os quais, não raras vezes, deparam-se com equívocos graves no processo de contratação, expedem recomendações de correção, mas pouca gente presta atenção a essas determinações. Então, estamos em boa companhia.

 

IBRAOP – Existe algum aspecto do seu artigo que você acha interessante destacar?

 

PAULO E RAFAEL – Sim. Justamente a necessidade de redirecionar alguns paradigmas, equivocados na nossa maneira de ver. Para resumir em duas expressões, os dois principais paradigmas modernos: Manutenção “Proativa” e “Best-First Approach”.  Mas, vamos por partes.

 

Um dos aspectos mais relevante diz respeito à abordagem de manutenção denominada “Reativa” – largamente aplicada no país. Veja só: todo item de patrimônio (o revestimento das rodovias, por exemplo) apresenta uma determinada “condição”, que sofre deterioração conforme o uso e com o passar do tempo. Então, identificada determinada condição de deterioração, se a providência seguinte for “o início ao processo de manutenção”, está-se frente a uma abordagem reativa; se a providência seguinte for “aplicar a intervenção de manutenção”, está-se frente a uma abordagem proativa.

 

Diz-se que a abordagem é “Reativa”, porque a intervenção é uma reação a uma deterioração identificada. Como se ela não fosse previsível. Uma vez identificada essa determinada condição de deterioração, que a literatura acadêmica chama “evento-gatilho” (o aparecimento de trincamento da superfície do revestimento, por exemplo), a abordagem dá “o início ao processo de manutenção”. Ou seja, destacar recursos orçamentários e financeiros, termo de referência e edital de licitação para contratar o projeto de engenharia, depois de contratado dar início aos levantamentos dos defeitos da superfície, irregularidade, deflexão, diagnóstico, prognóstico, selecionar intervenções aplicáveis, consolidar o projeto de engenharia e o orçamento estimativo para contratação.

 

Mas, o processo não acaba. Há que aprovar o projeto de engenharia, compatibilizar o projeto e seus custos às disponibilidades orçamentárias e financeiras – não raras as vezes, o processo volta para “enxugar as intervenções” (?!?!?). E tem-se de preparar edital e termo de referência para a contratação das obras, submeter tudo à licitação, até a conclusão do processo de licitação, assinatura do contrato e ordem de início. Tudo isso se não houver a judicialização do processo em qualquer das etapas. Estamos falando de dois anos no mínimo. Note que a  estrada continua deteriorando enquanto o processo está andando.

 

A consequência prática desse processo “equivocado”, não apenas pelo fato de as intervenções reativas serem maiores do que a abordagem alternativa (a Proativa),  é que as intervenções e orçamentos levados a licitação e contratados serão majorados ainda mais: porque as necessidades da rodovia e o montante financeiro demandados serão maiores no momento da execução (na ordem de 35%). Já se sabe da necessidade de ajustar as intervenções de manutenção e o orçamento contratado por conta da continuidade do processo de degradação que ocorria enquanto o processo estava andando.

 

Alternativamente tem-se a abordagem de manutenção denominada “Proativa” (também denominada “Centrada na Confiabilidade”). Aplicam-se modelos probabilísticos de previsão da evolução da deterioração (daí o termo “centrada na confiabilidade”), são definidos os denominados “eventos-gatilhos” (por exemplo, o início do trincamento, o início do aparecimento de panelas, etc) e especifica-se as intervenções que serão deflagradas quando os eventos-gatilhos surgirem. Então, são aplicados modelos de previsão do comportamento das intervenções para verificar como o item de patrimônio se comportará depois da aplicação da intervenção. E o processo de degradação / intervenção recomeça. Ou seja, a “Proativa” se antecipa aos eventos e, dessa forma, caracteriza-se por prescrever intervenções menores e, portanto, mais baratas. A diferença entre uma e outra é na casa dos 35%.

 

Mas, nem tudo são flores. E duas das desvantagens da abordagem “Proativa” são: uma, é que o processo é deslocado dos engenheiros de campo para os sistemas computacionais (os engenheiros de campo ressentem da perda de poder e costumam ser refratários a utilização dos sistemas computacionais); a outra desvantagem está na necessidade de contar com modelos de previsão da evolução da degradação e modelos de previsão do comportamento das intervenções “confiáveis” – todavia, o deslocamento da atenção da academia para esses sistemas contribuiu para o desenvolvimento de modelos bastante confiáveis.

 

O segundo aspecto igualmente relevante diz respeito ao processo de priorização das intervenções. No caso, o denominado “worst-first approach” ou “os piores primeiro”. Meu falecido pai já dizia: prioridade é o que vem na frente, por primeiro, antes de qualquer coisa antes (a redundância não era por acaso). No caso, o processo de priorização das intervenções é de extrema importância e nem sempre recebe atenção devida.

 

Vamos tentar entender como isso afeta a preservação das rodovias. Uma grande parte dos recursos para a preservação das rodovias do sistema viário americano vem de uma cobrança embutida no preço dos combustíveis – semelhante ao extinto Fundo Rodoviário Nacional. É coisa de centavos, mas faz uma enorme diferença no montante. Então, quando os americanos tiveram de enfrentar uma das crises do petróleo, pelos idos da década 80, tiveram de rever todo o processo de preservação das rodovias. E agiram nas duas pontas, na receita e na despesa: de um lado, foram buscar fontes alternativas de receita; mas, na outra ponta, decidiram também rever o processo de definição das intervenções de manutenção.

 

Em uma das etapas dessa revisão do processo de definição das intervenções de manutenção, engenheiros especialistas em manutenção de rodovias visitavam os departamentos rodoviários americanos para entender como se dava o processo de priorização da manutenção. Foi quando se deram conta do tal “worst-first approach” que é priorizar “primeiro os priores” segmentos. Mais ou menos assim: em um ambiente de elevada restrição financeira, a agência rodoviária precisa decidir como aplicar (digamos) US$ 1milhão: se aplica US$ 200mil/km nos 5 km piores segmentos ou aplica US$ 5mil/km nos 200km melhores. Como o próprio nomes diz, os responsáveis pela tomada de decisão preferiam recuperar os 5km piores, abandonando os demais 200km – perceba a disponibilidade era US$1milhão, nada mais. Daí vem o nome da abordagem “Primeiro os Piores”.

 

Aqueles 200km abandonados estariam em piores condições no ano seguinte enquanto 5km foram recuperados. Efetivamente “abandonados” porque não haveria quais recursos adicionais. Os responsáveis confrontados com essa possibilidade insistiam na expectativa de “recursos adicionais”, que nunca vinham. Alguns estudos acadêmicos, aplicando modelos computacionais para o gerenciamento da manutenção de redes rodoviárias, comprovaram que a abordagem “Worst-First Approach” chega a ser 50% mais cara que a alternativa “Best-First Approach”. Pior, sob o  “Worst-First Approach” a condição geral de manutenção da rede de rodovias não para de piorar, a menos que você disponha de recursos para reverter essa situação – e estamos falando de muito, mas muito recurso mesmo.

 

Juntando, “Worst-First Approach” (+50%) com Manutenção “Reativa” (+35%) estamos falando de orçamentos mais caros, na ordem de 100% (1,50 x 1,35), que a opção alternativa “Best-First Approach” mais Manutenção “Proativa”.

 

IBRAOP – Por fim, como você acredita que o Ibraop deve atuar para continuar contribuindo para a melhoria do controle das obras públicas no país? 

 

PAULO E RAFAEL – Quer me parecer, o Ibraop faz um excelente trabalho. Quando as coisas avançam muito rápido, é normal o surgimento de conflitos desnecessários, resultantes da perda de poder ou ameaça ao poder consolidado. Quando as coisas andam muito devagar, a um sentimento de descrédito, inutilidade.

 

Perceba-se, o Ibraop consegue avançar com as pautas de controle e de melhoria da qualidade dos produtos entregues à população sem gerar conflitos com os setores de construção e execução, ou de supervisão de obras – como são os Procedimentos de Auditoria para Obras de Engenharia Civis e Rodoviárias, que prestam enorme apoio, especialmente aos engenheiros que não são tão familiarizados com essas áreas.

 

Sinal que o Ibraop está no rumo certo.